Exército de Irmãs
Um organismo é uma ditadura. Cada célula vive apenas para o bem da comunidade e qualquer pensamento de individualidade é punível com a morte. Abraçadas entre si, formam canais gigantes de abastecimento de nutrientes e ar ou de excreção. Tocam-se levemente para criar uma rede que propaga as ideologias à velocidade da luz, recompensando os comprometidos e decapitando os revoltosos e os desnecessários. O braço da lei é musculado e intransigente, defendendo a comunidade dos invasores e perseguindo os egoístas.
Longe estão os dias em que olhavam apenas por si, nadando sozinhas em poças peganhentas, ora fugindo de repelentes, ora correndo para atraentes. Não foi assim há tanto tempo que experimentaram viver em comunidade, abdicando da sua polivalência e abraçando a especialização em nome da sobrevivência. Ainda hoje podemos ver estas tentativas mais ou menos bem sucedidas.
A célula do organismo morre orgulhosamente na sua função, vítima do próprio ácido que segrega. Morre sabendo que um exército de irmãs a seguirá cegamente. A célula do organismo cresce quando lhe é dito, segrega quando lhe é ordenado e sacrifica-se quando lhe é exigido. Nada há para além da sua função.
Os polícias de uniforme branco reagem também mecanicamente e sem medo, seleccionado os melhores soldados para fazer cumprir a lei. Defendem o organismo daqueles que ainda vivem sob o regime relaxado do individualismo e cujo sucesso implica a destruição do que lhes rodeia.
Os livres-pensadores são tratados como inimigos. Quando uma célula ignora a informação que a une ao sistema e decide viver em função de si própria é prontamente iniciada uma guerra. O império vence quase sempre, mas casos há em que um livre-pensador destrói o império.
A ditadura é calculista. Não abdicando dos seus ideias forma alianças interesseiras com alguns dos seus inimigos ideológicos, albergando alguns individualistas primitivos em troca de funções essenciais. Nenhuma célula questiona estas negociações já que funcionam para o bem comum.
E é neste balanço sólido que o organismo persiste, procurando reproduzir o seu estilo de vida antes que este se torne insuportável. Albergam o inicio de um novo reinado que ironicamente se inicia num só individuo.
O que inevitavelmente derruba o império é o dito por não dito. É não conseguir espalhar a ideologia eternamente sobre a sua população, que eventualmente morre.
Deprimidos e sobre-especializados, os membros do império caído são brutalmente destruídos por individualistas oportunistas e até mesmo por pequenas comunidades bárbaras.
Rodando o parafuso micrométrico uns níveis acima vemos então que estas comunidades perfeitas se organizam em comunidades imperfeitas. Onde o individualismo ainda impera. Onde a evolução ainda lima arestas à espera do comprometimento, da sobre-especialização e do suicídio em prol do bem comum.
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